SEM A PLANTA
NÃO DÁ MAIS
Entenda porque mesmo com avanços promissores, uso de medicamentos a base de cannabis ainda é um desafio
Sem a planta não dá mais, se é que algum dia já deu. A questão aqui é que, mesmo com a criminalização, a gente nunca ficou de fato sem a planta
A contextualização histórica que introduz esta reportagem foi baseada na pesquisa do professor e historiador Jean Marcel Carvalho França, e apresenta as informações dispostas por ele no livro História da Maconha no Brasil.
Não se sabe ao certo o início dessa história, porém, os indícios mais antigos de possíveis relações entre as sociedades humanas e o cânhamo vêm da China, remontam ao neolítico e passam a ser bastante comuns a partir de 4000 a.C.
A China também foi pioneira quanto ao uso medicinal da planta, as receitas à base de cânhamo, na tradição oral, são anteriores a 2000 a.C. Essa história, embora menos documentada, também é extensa e muito importante.
Ainda com relação ao pioneirismo Chinês, mas avançando um pouco no tempo, por volta do século 1 a.C., é descoberta outra aplicação para a fibra do cânhamo, a confecção de papel.
E há registros escritos do uso medicinal também nesta época, em que a planta é recomendada para combater diversos males, como dores reumáticas, constipação intestinal, desarranjos no sistema reprodutivo feminino, malária e tantos outros.
Já no primeiro século da era cristã, Hua Tuo, conhecido como o precursor da cirurgia chinesa, utilizou um composto da planta, misturado ao vinho, como anestesia para pacientes durante suas experiências cirúrgicas. Logo os indianos também começaram a utilizar a planta, sobretudo no combate de uma variedade de doenças, como nevralgia, dor de cabeça, dor de dentes, reumatismos, inflamações diversas, raiva, nervosismo, problemas respiratórios, diarreia, cólicas, falta de apetite, retenção de urina, infecções de pele e, recorrendo aos poderes supostamente afrodisíacos da planta, problemas reprodutivos.
O cânhamo tem grande influência na cultura hindu, tanto é que, conforme apresentam os livros sagrados indianos, ele estava presente com o próprio Shiva no início do mundo. A Índia tem inclusive grande participação na disseminação da planta e de seus usos no Oriente Médio, na África e na Europa. Os árabes, conhecedores de uma larga gama de medicamentos que o incluíam, sendo mencionado inclusive em diversas passagens dos tratados médicos do sábio Avicena, introduziram o seu uso terapêutico na Península Ibérica, onde médicos mouros, leitores das obras do referido Avicena e de outros compêndios da época, o indicavam como diurético, digestivo, para amenizar a dor de ouvido e para “acalmar o cérebro”.
Já o contato Europeu aconteceu por pelo menos duas rotas. Primeiro, por meio dos citas, usuários da Cannabis, que a levaram para a Grécia e para a Rússia, esta última, se tornou uma exportadora de consideráveis volumes de fibras de cânhamo para o restante do continente até meados do século XX. Além desta via, mais tarde, os árabes introduziram a planta na Península Ibérica. Por meio dos indianos, a leste, e dos árabes, a oeste, a Europa conheceu as propriedades medicinais do cânhamo e, por sua vez, introduziu a planta na América.
Mesmo que a cannabis não esteja entre as principais produções agrícolas dos Romanos, eles a importavam em quantidade e a utilizavam cotidianamente. Por isso as referências à planta e ao valor de suas fibras espalhadas pelas obras de autores latinos.Receitas com cânhamo para combate a males do estômago, dores diversas, reumatismos, doenças dos nervos e outras enfermidades “do corpo e do espírito” persistiram entre médicos, cirurgiões, boticários e práticos europeus ao longo do período que vai do século XIII ao XVIII. Foi somente a partir da quarta década do século XIX que a medicina do Velho Mundo parece ter realmente descoberto as possibilidades medicinais do cânhamo. Dois estudos então lançados com espaço de meia década, um na França, outro na Inglaterra, foram decisivos. O estudo pioneiro é assinado por William O’Shaughnessy, um irlandês professor de química da Faculdade de Medicina de Calcutá.
O’Shaughnessy, sempre amparado em relatos de casos, sugeria que a planta poderia ser utilizada com sucesso no tratamento do reumatismo, da hidrofobia, da cólera, do tétano e da convulsão, inclusive a infantil. Foi o médico irlandês quem introduziu a erva e as suas possibilidades terapêuticas no meio científico europeu. Na época, a comunidade médica ainda discutia as sugestões do irlandês, quando veio a público na França, em 1845, o longo e detalhado estudo do doutor J. J. Moreau, de Tours, intitulado “Do haxixe e da alienação mental: estudos psicológicos”, abrindo um novo campo de possibilidades para o estudo dos usos médicos da Cannabis: o da doença mental.
O livro de Moreau, que já havia escrito um ensaio sobre o haxixe em 1841, apresentava uma extensa história do uso estimulante e terapêutico da Cannabis, e comentava sobre diversas experiências, próprias e alheias, com a droga, avaliando os ensinamentos que se poderiam retirar das alucinações produzidas por ela para a compreensão dos denominados “delírios patológicos”.
Linha do tempo - História da Cannabis Medicinal
A disseminação da maconha da Europa e África para a América e o Pacífico ocorreu durante a expansão marítima europeia. O cânhamo desempenhou um papel crucial nesse processo, sendo amplamente utilizado na produção de velas, cordas e na calafetação de embarcações. No norte da América, os ingleses cultivavam cânhamo desde o século XVII para suprir as necessidades da Marinha.
Na América espanhola, no século XVIII, Madrid enviou especialistas para ensinar o cultivo do cânhamo, incentivando sua produção. No Brasil, notícias sobre o plantio de cânhamo surgiram no século XVIII, especialmente para atender às demandas da Marinha portuguesa. Apesar de iniciativas no século XIX, o apoio governamental à cultura do Acânhamo no Brasil diminuiu significativamente após 1945.
O uso medicinal da Cannabis ganhou destaque no século XIX, conforme relatado por O’Shaughnessy e Moreau, resultando em sua inclusão em diversos medicamentos. No entanto, a proibição do cultivo e consumo da planta ocorreu internacionalmente em 1936. Após a década de 1960, a pesquisa médico-científica sobre a Cannabis foi retomada, impulsionada pelos avanços tecnológicos e mudanças sociais.
No Brasil, a utilização medicinal do cânhamo começou a ser documentada no século XIX, mas a elite concentrou esforços no combate ao canabismo, resultando na proibição do cultivo e uso da planta em 1936. Apesar de alguns estudos estrangeiros, a escassez de documentação nacional indica um foco na oposição moral ao hábito do canabismo pela elite brasileira.