CANABIDIOL NA MEDICINA
Para entender melhor o papel da maconha na Medicina moderna, é necessário diferenciar os compostos presentes na cannabis. Há mais de 100 fitocanabinóides descritos na planta até o momento, entre estes, o canabidiol (CBD), substância hoje amplamente utilizada em medicamentos, e o tetrahidrocanabinol (THC), um dos principais princípios psicoativos da planta. Ambos são os canabinóides mais abundantes encontrados na cannabis, e também os mais conhecidos e estudados.
Os canabinóides atuam no corpo principalmente pela interação com o Sistema Endocanabinóide, ativando receptores específicos no corpo humano com diferentes efeitos.
SISTEMA ENDOCANABINÓIDE (SE)
O Sistema Endocanabinóide se consolidou como um sistema que regula processos fisiológicos, qualificado como foco terapêutico para tratamento de várias condições patológicas. Este sistema tem um funcionamento independente da cannabis no corpo humano.
O ponto de partida para compreender o SE foi o aprofundamento dos conhecimentos sobre os fitocanabinóides: CBD, em 1963 e, um ano depois, a descoberta do THC, pelo professor Raphael Mechoulam e seu grupo de pesquisa em Israel, com colaboração de pesquisadores de outros países.
RAPHAEL MECHOULAM
De família judaica, Raphael Mechoulam nasceu em Sófia, capital da Bulgária, no início dos anos 1930. Território que, já no início da Segunda Guerra Mundial, resolveu apoiar o regime nazista alemão. A família Mechoulam então passou a migrar por vilarejos no interior do país, até que o pai de Rapahel foi mandado para um campo de concentração dentro da Bulgária. Por sorte, todos sobreviveram. Em 1949, os Mechoulam emigraram para Israel.
Em Israel, Rapahel Mechoulam começou a estudar química e desenvolver pesquisas sobre inseticidas no Exército e, posteriormente, seu trabalho de doutorado se concentrou na química sintética.
Em entrevista para a revista Super Interessante, publicada em 27 de fevereiro de 2014, o cientista conta porque decidiu estudar cientificamente a maconha.
“Lendo antigos textos científicos sobre a cannabis percebi que era um campo rico para uma nova investigação. Havia muitas pesquisas do século 19, mas na década de 1960 ela era totalmente negligenciada. Aproveitei que conhecia diversas línguas — incluindo o francês, o alemão e o russo, nos quais a maioria desses textos estavam escritos – e encontrei dúzias de trabalhos publicados em revistas obscuras e esquecidas. Sabia que a morfina tinha sido isolada do ópio há quase 200 anos, cocaína das folhas de coca há cerca de 150. Era surpreendente, àquela altura, que não conhecêssemos o princípio ativo da cannabis”.
Na década de 60, o pesquisador descobriu o THC e aprofundou os conhecimentos sobre o CBD ao isolar os compostos da planta. Mechoulam dedicou-se por 55 anos à pesquisa na área. Ele ajudou a fundar, na universidade israelense, um centro de estudos sobre canabinóides, pavimentando o caminho para estudos inovadores e também dando início à cooperação científica entre pesquisadores pelo mundo.
CRIANDO POSSIBILIDADES
Mechoulam tanto incentivou a cooperação científica entre pesquisadores pelo mundo que teve participação no livro Canabidiol na Medicina – da pesquisa à prática clínica, lançado por pesquisadores da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP) da USP, a universidade que, em 2017, inaugurou o primeiro Centro de Pesquisas em Canabinóides do Brasil.
A obra, organizada pelos professores José Alexandre de Souza Crippa, José Diogo Ribeiro de Souza, Francisco Silveira Guimarães e Antonio Waldo Zuardi, apresenta os dados científicos, abordando o conhecimento fundamental sobre o CBD medicinal.
Explorando os avanços científicos, 'Canabidiol na Medicina' oferece uma visão esclarecedora sobre o potencial terapêutico do CBD
Publicado para auxiliar os médicos brasileiros na prescrição do canabidiol, dentro das normas regulatórias atuais, o livro conta com a apresentação de Mechoulam, professor da Universidade Hebraica de Jerusalém, uma das maiores autoridades mundiais sobre o tema.
AS BOAS INFLUÊNCIAS
Em entrevista para esta reportagem, a psiquiatra Joana Cordeiro, que atende atualmente em Frederico Westphalen, contou que, quando realizou seu mestrado na Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP) da Universidade de São Paulo (USP), participou do grupo de pesquisa que estuda o canabidiol, o que influenciou diretamente na iniciativa da médica em prescrever a substância.
“Lá na USP Ribeirão, o grupo onde eu fiz o mestrado é o grupo brasileiro que pesquisa o canabidiol, junto com o Raphael Mechoulam, que é o israelense químico que isolou a molécula do canabidiol na década de 60. Ao longo da residência, como é um centro de pesquisa que publica muito, a gente acaba tendo convívio com as pesquisas experimentais, com as novas descobertas, com essas parcerias internacionais, então eu fui acompanhando em paralelo. Conheço muito bem os pesquisadores e os psiquiatras que tiveram esse pioneirismo, em se dedicar mais à compreensão do canabidiol. E isso me faz ficar mais à vontade para começar a prescrever, porque como é algo muito novo, é natural que os médicos sejam mais conservadores e apenas observem, porque quando não se tem um conhecimento aprofundado do medicamento, é irresponsável prescrever”, afirma.
No Brasil, pesquisadores, médicos e pacientes enfrentam as barreiras impostas pelo estigma que envolve a planta. Associar a liberação do cultivo ao uso recreativo da cannabis é uma das questões que limitam avanços significativos na área. Em 2022, o Conselho Nacional de Medicina voltou a restringir o uso do medicamento por meio da resolução CFM n° 2.324, que autorizava que produtos de cannabis fossem utilizados apenas para tratar determinados quadros de epilepsia, proibindo a prescrição de todo e qualquer outro derivado da cannabis que não o canabidiol.
A resolução apresentava também um artigo, em que era “vedada” aos médicos a prescrição do canabidiol para outras doenças, exceto se o tratamento fizesse parte de estudo científico. Posteriormente, a resolução foi derrubada pelo conselho.
FOI MAL, ME ATRASEI
“Esse ano o Conselho Federal de Medicina tentou proibir a prescrição da cannabis. Eles liberam a cloroquina para a COVID e proíbem o canabidiol. As entidades médicas, elas são muito conservadoras mesmo, reacionárias, conservadorismo retrógrado, que é até anti-científico assim, porque são decisões ideológicas”
Ainda que, no Brasil, pesquisas envolvendo a planta avancem de forma significativa, retrocessos como a resolução CFM n° 2.324 e, principalmente, a criminalização, limitam estudos científicos e contribuem com o recuo de possíveis tratamentos.
“A falta de pesquisa gera um atraso, não avança, a gente fica sem uma fundamentação técnica qualificada segura para fazer uso da natureza, dos recursos. O Brasil tem bastante publicações na área da saúde, analisando sob a perspectiva do cenário mundial, principalmente por ter uma população grande, também por conta do Sistema Único de Saúde, pelos Hospitais Escola, que são os hospitais de clínica, terciários, que atendem vários pacientes com doenças graves. Temos protocolos de pesquisa junto com os protocolos assistenciais de atendimento, então nossos estudos têm grandes populações. Por conta disso conseguimos ter uma qualidade estatística melhor, porque toda vez que se obtêm dados, ao avaliar esses dados, são realizados testes estatísticos para conseguir realmente filtrar a significância daquilo. Significância estatística numa população, porque depois vai ser aplicado para a população, e aí é possível obter essa robustez. Mas pesquisar é muito difícil, porque é necessária autorização judicial para não ser enquadrado como traficante ou como usuário quando se tem cannabis no laboratório para pesquisar”.
São justamente essas barreiras que favorecem a clandestinidade. Famílias que convivem com doenças graves e têm a maconha medicinal como tratamento acabam recorrendo aos meios possíveis de obtenção do medicamento. Isso pode implicar no consumo de remédios sem regulamentação, o que torna a identificação da concentração e dos compostos presentes no produto imprecisa.
REGULAMENTAÇÃO PRA QUEM?
Aqui, provavelmente o principal impedimento imposto aos pacientes são as barreiras econômica e sociais de acesso ao medicamento. Além da estigmatização da planta e a influência que isso tem sob a decisão de seguir o tratamento, mais dificuldades se apresentam no início do processo terapêutico. Isso porque essa busca entra no "hall" do acesso ao atendimento especializado, em que, qualquer pessoa que adoeça de uma condição médica relacionada ao cérebro, vai demorar muito para chegar no especialista.
Embora a atenção básica primária, que são os postos de saúde, tenha avançado significativamente, o atendimento especializado, seja ele em qualquer área, só é possível na consulta secundária, de especialista. A fila pode demorar de dois a três anos, e a consulta é realizada apenas no ambulatório de especialidade, que se encontra somente em metrópoles, capitais ou cidades de médio e grande porte. No ambulatório de especialidades os especialistas solicitam exames e, para realizá-los, há fila também, assim como há fila para voltar na consulta e mostrar os exames.
“A gente não consegue atender todo mundo que precisa. Primeiro que é muito caro o tratamento na rede privada. Isso já é uma barreira para 90% da população, que não tem renda para pagar um tratamento, e os 10% que tem, não tem especialista o suficiente para atender. Então o acesso já começa a ter essas barreiras. Quem chega aqui, ou pelo SUS e consegue avaliação completa e a prescrição, tem a barreira econômica, porque o medicamento, o frasco em geral, tem três concentrações principais. 20 mg/ml, 50 mg/ml e 200 mg/ml, sendo que o de 20 mg/ml é vendido na faixa de R$ 300,00, o de 50 mg/ml R$ 900,00 e o de 200 ml/mg mais de R $2.000,00 o frasco. Em média, são usados de dois a três frascos por mês, então é inacessível”.
Segundo a psiquiatra, menos de 1% da população consegue manter um tratamento em dose terapêutica necessária, o que acaba ocasionando falhas, que por sua vez influenciam na resposta ao tratamento, causando efeitos colaterais erráticos.
Mesmo que o Brasil seja o segundo país com maior número de escolas médicas no mundo, ainda há falta considerável de especialistas, principalmente nas cidades que não são capitais.
Além dessas barreiras, há também a dificuldade de acesso ao insumo, porque como o canabidiol vem de uma planta que tem o cultivo proibido no país, é necessário importar a matéria-prima. Importação em dólar, o que encarece consideravelmente o custo de produção, já no início, além de todas as práticas que envolvem a produção do remédio, desde a separação de uma molécula específica para transformá-la em medicamento.
Explorando os avanços científicos, 'Canabidiol na Medicina' oferece uma visão esclaredora sobre o potencial terapêutico do CBD
Raphael Mechoulam, pioneiro da pesquisa canabinóide
THC
O TCH é o canabinoide que exerce efeito psicoativo por meio da ativação dos receptores canabinóides tipo 1 (CB1), que ficam localizados principalmente no sistema nervoso central. Ele ativa também os canabinóides tipo 2 (CB2), que estão relacionados diretamente à atividade imune, isso porque este receptor fica localizado principalmente em estruturas do sistema imunológico.
CBD
Já os estudos sobre o CBD apontam que sua afinidade pelos receptores canabinóides é baixa, o que significa que, ao interagir com o receptor responsável pela “brisa”, o CBD diminui o efeito fisiológico da ativação desse receptor por um ligante como o THC. Ou seja, além de não provocar os efeitos relacionados ao uso recreativo da planta, o CBD ainda controla os efeitos do THC.
APLICAÇÕES
Autismo (THC & CBD) - atuam no controle da ansiedade, agitação e na redução da hiperatividade, beneficiando o controle do sono
Alzheimer e outras demências (CBD) - atua na redução da glicose reativa e da resposta neuro inflamatória, com indícios sobre os impactos no desenvolvimento de déficits cognitivos
Câncer (CBD & THC) - embora não tratem a doença em si, auxiliam no tratamento de náuseas e vômitos causados pela quimioterapia e radioterapia, contribuindo para uma maior qualidade de vida
Dor crônica (CBD) - auxilia na redução de dores crônicas por meio dos efeitos analgésicos
Epilepsia (CBD) - contribui na melhora das convulsões de forma significativa, é uma das principais indicações formais para epilepsias de difícil controle
Estresse pós-traumático (CBD) - reduz os sintomas de ansiedade e auxilia na melhora dos parâmetros do sono
Fibromialgia e dor crônica (CBD) - auxilia a diminuir dores e inflamações por meio dos efeitos analgésicos
Transtorno de ansiedade (CBD) - auxilia na redução dos sistemas de ansiedade e melhora dos parâmetros do sono
Mal de Parkinson (CBD) - auxilia na melhora de qualidade de vida e bem-estar do paciente
Lesões musculares (CBD) - auxilia na recuperação muscular devido à melhora do sono e controle do estresse, também pode ajudar a aliviar dores associadas a lesões esportivas e outras condições devido às propriedades analgésicas e anti-inflamatórias