À MARGEM
UMA HISTÓRIA DE PRECONCEITO
O preconceito em relação à cannabis medicinal é múltiplo, e está enraizado em questões sociais, históricas, políticas e culturais. Historicamente, a maconha foi vinculada ao uso recreativo e considerada uma droga ilícita em muitas sociedades, alimentando, assim, o estigma em torno de qualquer aplicação medicinal da planta.
Primeiramente, é crucial compreender que a cannabis medicinal não é uma abordagem recreativa, mas sim uma alternativa terapêutica para uma variedade de condições médicas. No entanto, o estigma historicamente associado à maconha recreativa muitas vezes se estende à sua forma medicinal, prejudicando a aceitação dessa modalidade de tratamento. Por causa disso, pacientes que buscam alívio para sintomas debilitantes enfrentam, por vezes, julgamento social e até mesmo profissional devido ao preconceito arraigado.
Esse preconceito começou a se intensificar no início do século XX, principalmente nas primeiras décadas. Vários fatores contribuíram para esse fenômeno, sendo um dos principais o contexto social e político nos Estados Unidos, que chegou a liderar uma campanha de desinformação conhecida como “Reefer Madness” (Loucura da Erva, em tradução livre).
A CAMPANHA REEFER MADNESS
A ”Reefer Madness” foi uma campanha de desinformação anti-maconha que ocorreu nos Estados Unidos nas décadas de 1930 e 1940. Foi caracterizada por um filme e materiais de propaganda que retratavam o consumo de cannabis de maneira extremamente sensacionalista e alarmista. O objetivo era criar um medo irracional em relação à planta, associando-a a comportamentos violentos, insanidade e ameaça à moral e à ordem social.
Os filmes da "Reefer Madness" retratavam usuários de cannabis como vítimas de insanidade instantânea e propensos a cometer atos violentos e criminosos. As histórias eram frequentemente exageradas e fictícias, destacando o consumo de maconha como uma ameaça grave à sociedade. Essa abordagem sensacionalista buscava mobilizar o apoio público para medidas mais rigorosas de controle da cannabis.
A campanha foi parte integrante do contexto que levou à aprovação da Marijuana Tax Act em 1937 nos Estados Unidos, legislação que impôs restrições significativas ao cultivo, venda e posse de cannabis. Essa lei a proibiu efetivamente em nível federal e foi um marco significativo no início da criminalização da maconha nos Estados Unidos. A campanha é agora vista como um exemplo clássico de histeria moral e desinformação sobre drogas.
No Brasil
A história da maconha no Brasil ajuda a entender esses estigmas e preconceitos, pois durante o período colonial e imperial, ela era consumida principalmente pelas classes sociais mais baixas, incluindo os escravizados, ao passo que o tabaco era mais comum entre as classes mais altas. Por estar restrita às camadas mais pobres, a maconha não virou uma preocupação social relevante.
Somente uma lei foi estabelecida limitando o consumo, alegando que o uso de maconha prejudicava o desempenho dos escravizados. Isto é, a motivação não era moral, mas sim, centrada na produtividade do trabalho do povo pobre e preto. Contudo, a lei teve pouco efeito.
A cannabis começou a se tornar um problema, de fato, nas primeiras décadas da República, quando surgiu um receio de que os costumes dos pobres, especialmente do povo preto, pudessem se espalhar para os níveis mais ricos da sociedade e “bagunçar” as classes médias e altas. A elite, na época, fez de tudo para evitar que a maconha virasse um “vício elegante”, mantendo o controle e impedindo que o pessoal mais abastado adotasse esse hábito.
Psiquiatras, pedagogos, juristas e autoridades policiais iniciaram uma campanha anti-maconha, associando-a à vadiagem, marginalidade, violência e até distúrbios psíquicos - influenciados pela campanha “Reefer Madness” dos EUA. O problema residia na fragilidade dos estudos que embasavam tais julgamentos, pois as pesquisas eram conduzidas em locais como presídios, o que naturalmente estabelecia uma conexão entre maconha e criminalidade ao considerar apenas prisioneiros.
Os estudos careciam de abrangência, sendo imprecisos, mas eram o único recurso disponível na época. Assim, sem a devida demanda por explicações mais substanciais ou demonstrações, o estigma da maconha emergiu e se enraizou no imaginário popular, perpetuando o preconceito sem uma base científica sólida.
De forma sistemática, a maconha passou a ser proibida em 1932, quando Getúlio Vargas baixou um decreto que enquadrou a Cannabis como “substância tóxica entorpecente”. Na época, até mesmo o uso da fibra do cânhamo na fabricação de tecidos e cordas foi banido.